sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sobre a arte de palitar os dentes - Segunda Parte

               Verdade. É preciso talento para palitar os dentes. Manter a boca limpa é, ao mesmo tempo, esvaziar-se dos vestígios de sabor e encher-se dos vazios que os sabores deixam. Tem vezes que o sangue não para; ele corre em doses pequenas, todos os dias, lembrando a gente que há dor e que ela precisa ser sentida. Palitar os dentes é perigoso em todos os sentidos, porque deixa a boca e todas as suas imperfeições à mostra e essa vulnerabilidade não é para qualquer um. Quando falamos em palitar os dentes, não podemos ignorar nenhum deles. Daí decorre a dificuldade máxima de todo o processo. Alguns têm dentes grandes, largos, espaçosos, que se permitem palitar sem muito incômodo. Outros, mais estreitos, delgados, cheios de autonomia e personalidade, não se permitem raspar e perder aquele pedaço de comida gostoso que solta na saliva memórias de uma refeição bem feita. Também nós, algumas vezes, não nos deixamos raspar. Queremos manter memórias de sabores de refeições bem feitas e nos recusamos a comer de novo. Alguns se alimentam muito rapidamente e já instalam entre os dentes novos pedaços de novas pessoas. Isso é pular etapas. Eu me permito sangrar.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Sobre a maldade e seus domínios

                                    
            Não sei se é o mundo que anda desconsertado - ou desconcertado? - ou se sou eu que ando constantemente desencontrado. De uma forma ou de outra, o fato é que encontro nas pessoas, nestas pessoas que habitam este mundo mesmo e não qualquer outro, maldades muitas e eu já não posso mais. Não pode haver prazer na dor do outro, nem sorriso onde se faz alguém chorar. É uma premissa básica, bilhete de geladeira decorado, é o Bê-a-bá da ponta da língua da vida, que não é outra coisa senão uma série de encontros muitas vezes mau sucedidos. E mesmo consciente da pieguice de falar de bondade e consideração, enquanto o mundo está na vitrine reluzente das redes sociais, prefiro correr o risco de pecar por esse romantismo que aqui se ostenta e se depreda. Mudar as pessoas nunca foi minha intenção, mas gostaria de que soubessem o que penso sobre elas, sobre a maldade e seus domínios.  Não é verdade que todos colhem o que plantam. Também não é verdade que aqui pagamos pelo que fazemos. Isso é só conforto, para que a vida pareça apresentar certo tipo de congruência e lógica. Fazemos o que fazemos - essa é a única lógica. Alguns deixam neste mundo sua trajetória, outros saem dele sem serem percebidos.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Siso e Riso

              É inevitável não notar que, nos últimos dias, muitos casos sobre notáveis moradores de rua que, por seus talentos variados, ganharam um novo olhar da população. São inúmeros mendigos que pintam, que cantam, que parecem modelos, que fazem trabalhos artesanais e, por isso, perdem quase imediatamente a aura negativa que, naturalmente, existe em torno deles. Para esses o destino é quase certo. No sábado, aparecerão no Caldeirão do Huck e ganharão uma ajudinha ou, no domingo, o Esquenta vai carnavalizá-los e celebrar a mistura, o balanço, o caviar disfarçado de acarajé, ziriguidum e samba no pé. Esses ganham o aplauso da população e para esses apertamos os botões e viramos a cadeira. Esses, agraciados pelo destino, de alguma forma, merecem ganhar nossa atenção porque parece absurda a ideia de um mendigo violinista ou, pior ainda, parece absurdo e quase magnífico o fato de alguém que mora na rua ser 'simplesmente bonito'. O que me espanta e perturba é o destino daqueles que são só gente. Aqueles que não pintam, não cantam, não são modelos; são como eu e você. Aqueles que não terão um Lar Doce Lar e não fazem nada que não seja apenas tido como normalidade. Quanto a esses o que é feito? Pagam o preço por só serem o que são? Há quem diga que, se se esforçarem bastante, poderão também 'crescer na vida'. É a meritocracia que está ali, todos os dias, dizendo que temos que correr atrás do prejuízo - como se nós tivéssemos culpa ou responsabilidade por tudo o que nos acontece. "Deve ser algum drogado ou bêbado", alguns dizem e se vão; tomam o ônibus e seguem. No fim do expediente, tem cerveja gelada, ainda bem. Para os que não sabem ser artistas, não há capas de revistas, nem Gugu Na Minha Casa. Para esses algumas moedas do bolso são o bastante e olhe lá..

Quando a gente chove

            Quando a gente chove por dentro não há quem interrompa. Quando a gente chove, engarrafa tudo no peito, transborda tudo nos olhos, falta luz no rosto e sobra muito o que enxugar. Quando a gente chove por dentro, o nosso mau tempo não dá um tempo sequer. Quando a gente chove, o melhor é deixar escorrer e vazar um pouco de água e um pouco da gente também. Deixar-se chover e nada mais.