quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Mingau



               Absolutamente. É na espera pela iniciativa que o mingau desanda, porque a panela, quando quente demais por estar muito tempo no fogo, queima o leite e solta um bocado de saliências que vão de pouquinho, como quem nada quer, empelotando tudo. O movimento da colher, que antes era feitinho em seu girar carrossel, depois de muito tempo fazer o que só sabe – girar –, perde sua graça natural de colher girante – de pau ou de qualquer coisa – e vai tropeçando nas bordas da panela, talvez à procura do ritmo perdido.  E a iniciativa que inicia o desejo de comer o mingau pronto é também a que dá fim ao processo de preparo, embora, muitas vezes, o desejo de comer se encerra no próprio desejo, e o mingau, por si só, já não serve para nada.  Talvez seja esta a problemática global do processo da receita: a distância curta, porém significativa, entre o prazer que se finda no processo e o gozar que reside para além do processo, que se esgota no comer. Tendo, então, duas mãos, duas colheres e um mingau, a grande distância pequena que separa pensar e comer, durante o preparo, pode resultar em delícia ou dissabor.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Tempos oblíquos

                        Não é novidade nenhuma que a desigualdade social se reflete nas relações interpessoais e, nesse sentido, na própria dinâmica organizacional da população. Também não é novidade que vivemos em uma país violento, em que estamos mais presos do que os presos. O que parece apresentar certo tom de ineditismo é o discurso oblíquo e em grande parte contraditório daqueles que postulam com veemência a legitimidade de atos que procuram exaltar uma suposta justiça feita. E esse discurso torpe e leviano demonstra não só um pensamento que é, por si só, retrógrado, mas também evidencia a própria condição medíocre em que nos colocamos quando, munidos de uma fajuta capacidade de fazer o certo, prendemos pescoços em postes. O que se prende eu já sei, está nos noticiários todos os dias. E o que se aprende? Ou melhor, e o que se apreende em relação a tudo isso? E não me diga que sou hipócrita e que, se meu Iphone tivesse sido roubado, eu também quereria espancar um ser – ainda humano. Somos assaltados todos os dias, por instâncias que mal supõe nossa vã filosofia. Não precisamos de mais umbigocentrismos. Tampouco precisamos dessa justiça que só se faz presente no preto, no pobre, no favelado.  Você não precisa adotar um bandido para mostrar que faz algo pela sociedade e eu não preciso adotar essa justiça para mostrar que me importo.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Sempre tem gente para chamar de nós




       Ontem, quando perguntado por uma amiga sobre o que fazer diante da sensação de estar perdido no mundo, respondi, categoricamente, como quem esperou um dia inteiro por aquele momento: “Acho que isso é um bichinho errado, que só entra na nossa cabeça quando perdemos nosso equilíbrio próprio.” Não sei se aquilo fez algum sentido para ela, mas, para mim, pareceu um grande punhado de palavras combinadas que não diziam por mim, só diziam. Foi como ser dotado de um conhecimento que sempre vou buscar na opinião alheia, quando, na verdade, está aqui, comigo, o tempo todo. Com isso, foi inevitável não me perguntar quantas outras coisas eu sei, quantas outras palavras eu tenho, quantas outras saídas eu encontro para os outros e fecho para mim. Somos sábios de dentro pra fora e apagamos as luzes quando nos voltamos para dentro.  Ela se satisfez – ou parece que – e foi dormir, mas eu não dormi. Eu fiquei. E as palavras que eu mesmo proferi com propriedade de quem passou por experiências muitas ficaram dançando descompassadas, procurando sentido justamente em quem as produziu: eu. Talvez seja o caso de achar que não somos donos dos conhecimentos que produzimos ou, ainda, que tudo o que pensamos só pode se revelar no outro, nunca em nós mesmos. Pode ser que daí decorra a função prática da amizade e do amor: a necessidade de se construir a partir do outro e do outro fazer o mesmo em nós. Não é à toa que a  sensação de se sentir perdido no mundo - a mesma sensação que ela, você e eu sentimos - está intimamente ligada à perda de uma amizade ou de um relacionamento. A grande questão nisso tudo é o que fica em nós depois das perdas – ou seria o que foi com elas?