domingo, 22 de fevereiro de 2015

Metros a fio

                Por um tempo, eu acreditava que sabia exatamente o meu tamanho. Não me refiro àquele metrificável, porque, quanto a ele, eu pouco tenho a pensar a respeito. Em termos práticos, esse meu tamanho só dá forma a uma existência que, sem ele, seria pulverizada e etérea. Eu falo de um espaço outro, da dimensão que eu assumiria para além da matéria física, daquele tamanho meu que varia de pessoa para pessoa. Estou bem certo de que nunca fui do mesmo tamanho nesse sentido. Ao contrário disso, estou me aumentando e me crescendo dentro dos que me cercam constantemente; é um movimento involuntário e necessário, já que ser grande demais para todos seria demais para minha capacidade de significar coisas boas e ser pequeno sempre estaria em desconformidade com minha vontade de mundo. Mas o problema que me interessa e para o qual eu não posso deixar de olhar atualmente é quando há certo descompasso entre aquele tamanho que achamos que temos e aquele que temos de fato. Nesse ponto, reside, talvez, a problemática para dores variadas entre as pessoas: nunca há certezas sobre o quão equiparados são os tamanhos entre duas pessoas. Descobrir que somos - ou éramos - menos do que achávamos é escamotear certezas, fragilizar medidas e apagar sonhos. Veja que há pessoas na vida que passam por ela sem ser dar conta do tamanho imenso que ocupam nos outros; outras, como eu, são bem pequenos e nunca fizeram outra coisa senão procurar crescer.

A Lua

minguante,
quando ansiosa,
e cheia de personalidade,
pula do pano de fundo do céu preto e
pisca. Curvada em sua magreza de lua que míngua,
sorri de lado, meio que sem jeito, meio que sem prumo.
Entende que não é cheia de si
porque ninguém a olha como deveria.
Magrela e feito uma foice luminosa,
corta as nuvens;
espalha novidades
e imprime na noite
um gosto qualquer de maravilhamento.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

A face oculta da Lua

Minhas palavras,
essas ordenadas em versos que ofereço, são
só o que delas deixo sobreviver.

Outra parte,
a mais preciosa,
aquela que deixa brecha para me penetrar,
a que se contorce e se debate,
meu lado mais furioso e, por isso mesmo, mais visceral,
a minha ponta de lança,
o que me atinge e me desmorona,
a vagina, o clitóris, meus seios tesos,
o eriçar das minhas coxas,
meu calcanhar de Aquiles,
minha música lenta preferida,
meu desejos e medos,
os meus sonhos alados,
minha esperanças grandes e minhas esperanças miúdas,
a polpa da minha fruta,
meu bilhete de loteria,
aquela dor nunca dita,
aquele porre que tomei de amor,
aquelas lágrimas que não caíram, mas que existiram,
as minhas observações mais minuciosas,
...

Essa,
quase desconhecida e negligenciada,
está em instâncias cujos trajetos são conhecidos somente
àqueles que se propõem a percorrer o trajeto sinuoso
de mim.

Lógica do mundo

Vê-se que nada é tão belo quanto o desassossego,
Porque, na calmaria, reside o campo infértil
Das certezas
E nada mais impróprio para a vida humana.

Vê-se que nada é tão forte quanto o pertencimento,
Porque, na distância, existe uma centelha viva
De insegurança
E nada mais alucinador para consciências frágeis.

Vê-se que nada é tão perigoso quanto a lealdade,
Porque, na traição, algo há de mistério negativo,
De nó de marinheiro
E nada mais perturbador para a engenharia dos sonhos.

Vê-se que nada é tão básico quanto a verdade,
Porque, na escuridão, mora o paraíso oblíquo das enfermidades,
Das involuções
E nada mais viral para um corpo sadio.

Vê-se que nada é tão estranho quanto o amor,
Porque, no ódio, tudo se autoexplica num circuito simples
De enganos
E nada mais matemático para o insucesso do mundo.

Compositor de destinos

Temporal
Temporal
Tempo
Tempo
Tempo
Temp
Temp
Tem
Te
T
.

Mea Culpa

             Em verdade, o amor pouco tem a ver com o coração. Retifico: nada tem a ver o amor com o coração. É na garganta que reside a parte mais sensível dos amadores. Digo porque ela segura as pontas de todo rebote negativo ou instaura, por meio de palavras, a existência do amor como sentimento que existe mesmo. É obscuro, pois, imaginar que exista uma forma de amar que não seja dependente de uma garganta resistente; ela é o cinto de segurança contra as enfermidades eventuais, retrocede ou impulsiona as manifestações, que são, antes de qualquer outra coisa, a ação direta não de um coração que pulsa, mas de uma garganta que toma coragem e admite responsabilidades. O coração é, na verdade, um álibi confortável, um réu inocente que aceita - e, às vezes, nega - o fardo pesado de uma culpa sem dono. É uma ilusão conveniente para quem ama acreditar que a essência de um órgão involuntariamente pulsante carrega consigo as diretrizes para o sucesso ou insucesso de uma relação amorosa. Ao contrário disso, imaginar que somos, gargantamente falando, senhores do grito ou do silêncio e, consequentemente, donos dos caminhos que percorremos, é tomar para si uma função perigosa. Culpa-se, então, a título de escapatória, o coração, o destino, ou alguma força de ordem metafísica, ilusões de uma anedota inventada para nos confortar diante dos paraísos tortuosos da vida.

Intranquilidade

                Veja-me como a quina da mesa do escritório, que, na sua natureza de coisa que é ponta, te aponta para uma dor aguda e latejante. Veja-me como o dedo mindinho; miúdo, estranho, de aspecto nunca ao certo descritível, de semblante errante e sempre inadequado para a harmonia dos pés. Veja-me como quem vê a morte, a fome, as pragas, os pecados, as imoralidades, as perversões. [Arregale os olhos.] Veja como quem vê um gato aberto, atropelado, esfacelado; como quem estuda a anatomia de suas tripas e percorre com atenção o rastro de sangue, que é o rastro da sua própria história. Veja e ouça; ouça com estetoscópios de metros o bate-estaca da minha presença que só é presença
porque só presença eu sei ser. Veja a mim dentro da geladeira, sobre os frutos estragados. Veja-me deteriorando os objetos, oxidando todas as coisas, rangendo as portas do carro, entupindo a pia, derrubando os retratos das paredes, sendo a parede, sendo os retratos e depois derrubando tudo novamente. Veja-me no incômodo, no pinga-pinga da bica da cozinha. Veja-me, também, na primeira rajada de água fria do banho quente, antes de de dormir; encontre a paz na perturbação. Lá, bem lá, estarei eu.

Poesia da 4 e tal

Meu bem, a poesia existe.
Mas ela não é essa dos livros didáticos.
Ela dói.
Ela dói enquanto você dorme pensando.
Dói enquanto dorme pensando em outros.
Ela carece de sangue venoso e arterial.
Meu amor, minha poesia é só sua.
Só nossa.
Só minha.

Minha poesia é só minha e sua.
Nossa poesia é só nossa e minha.
Minha poesia é um paciente na fila do transplante.
Minha poesia só tem um pulmão.
E nenhum fígado.
Minha poesia toma pinga pensando em você.
Minha poesia fuma um cigarro pensando na gente.
Minha poesia precisa da nossa poesia.
Minha poesia te chama, meu amor.
Venha [!]

Minha poesia taca fogo no corpo e dança.
Minha poesia dança com fogo no corpo cheia de mistério.
Minha poesia toca só aqui, meu amor.
Minha poesia quer ser seu amor também.
Com Janis Joplin, ou Billie Holiday, ou Chico, ou o que você quiser que seja.
Eu troco a frequência enquanto você não olha.
Mas venha.
Minha poesia tem fome grande.
Amor, minha poesia quer dançar pelada no terraço enquanto você mede minha cintura com seus palmos.
Vamos dançar a minha poesia [?]
Minha poesia vai dormir.
Mas minha poesia te espera dormindo acordada.
Cheia de café.
Minha poesia dorme abaixo do teu travesseiro.
Acorda.
A minha poesia voa nos olhos dos homens.
Sobre tua cabeça.
Sob teus olhos
Meu amor; minha poesia desmaiou nos teus braços.

Salva-me.
Meu amor, salva-me.