sexta-feira, 29 de maio de 2015

Vhs

           Só quem já teve um videocassete em casa conhece, nos detalhes, a real e mais bruta experiência amorosa. Perceba que as duas coisas - o amor e o videocassete, ou melhor, o filme que nele se insere - em nada se diferenciam. Ao contrário disso, em tudo se assemelham e compartilham a mesma natureza delicada de uma existência cuja validade só se legitima a partir de mãos habilidosas. Repare que o filme - ou o que quer que seja -, assistido com o privilégio das pausas e rebobinações possíveis, só existe no estante mesmo em que se permite ler em um aparelho, evidentemente, sempre desconhecido e, na mesma esteira, sempre universal. O filme, aprisionado em seus limites de fita, nada é e nada faz: é um acontecimento a existir, uma vida ainda não parida, suspensa, desejosa por ser. Amar não seria senão a fome do outro, em uma espécie de coexistência mútua? Há quem diga até que amar sozinho é amor autoenganado, quase como uma super festa só para um. Não é mentira, também, se afirmássemos, sem nenhum medo de parecermos excessivamente pedantes, que todo videocassete que se caracteriza como tal falha, vez ou outra, na leitura da fita. Para desfazer tamanha atrocidade, é preciso ter destreza e certa artimanha nos dedos, porque, no manejar equivocado ou desleixado do problema, é possível - e quase sempre isto ocorre - que se machuque a fita, que se enrosque a extensão do seu corpo ao seu próprio corpo e, assim, o filme seja outra coisa que não era. O tratamento da situação adversa com algumas doses de maturidade de movimentos é, pois, primordial para que o filme - ou o amor - seja o que se pretendia ser e não qualquer outra coisa. Não há bons filmes onde não há manutenção constante daquilo que se pretende assistir. No mais, é necessário que não se confunda o prazer fugaz de um filme inédito pela experiência de uma fita com ranhuras já naturalizadas.

Trivialidades

               Perguntou se aquela curvatura da boca era sinal de dor ou de alegria comedida. Respondeu que era serenidade enviesada em um mastro fino e flexível, que se contorcia conforme a brutalidade dos dias ventosos. Perguntou se aquele silêncio que saía da mesma boca curvada era indicativo de complacência ou rebelião. Rebelião calada, respondeu sem nenhum vestígio de reticências. Perguntou se o mundo seria então só silêncio e paz velada. Respondeu que uma boca falante e cheia de dentes, às vezes, precisa repousar os lábios. Perguntou se a vida era aquilo mesmo, aquele latejar agudo e sorrateiro no peito. Respondeu que parasse de confundir o coração com aquela coisa maior cujo nome nenhum dois sabiam exatamente. Apagou o cigarro enquanto o outro apagava o abajur. Dormiram.

domingo, 3 de maio de 2015

A noite

densa
apaga
a luz
central
do céu
e finda
meus
sonhos
ver
ti
c
a
i
s
.