sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sobre a arte de palitar os dentes - Segunda Parte

               Verdade. É preciso talento para palitar os dentes. Manter a boca limpa é, ao mesmo tempo, esvaziar-se dos vestígios de sabor e encher-se dos vazios que os sabores deixam. Tem vezes que o sangue não para; ele corre em doses pequenas, todos os dias, lembrando a gente que há dor e que ela precisa ser sentida. Palitar os dentes é perigoso em todos os sentidos, porque deixa a boca e todas as suas imperfeições à mostra e essa vulnerabilidade não é para qualquer um. Quando falamos em palitar os dentes, não podemos ignorar nenhum deles. Daí decorre a dificuldade máxima de todo o processo. Alguns têm dentes grandes, largos, espaçosos, que se permitem palitar sem muito incômodo. Outros, mais estreitos, delgados, cheios de autonomia e personalidade, não se permitem raspar e perder aquele pedaço de comida gostoso que solta na saliva memórias de uma refeição bem feita. Também nós, algumas vezes, não nos deixamos raspar. Queremos manter memórias de sabores de refeições bem feitas e nos recusamos a comer de novo. Alguns se alimentam muito rapidamente e já instalam entre os dentes novos pedaços de novas pessoas. Isso é pular etapas. Eu me permito sangrar.

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