Meus maiores desejos
São instantes de
anos bissextos;
Buracos de agulhas
A face oculta da Lua
Eventualidades
Tickets atrasados de voos
Pontas de cigarro
Fotografias de relâmpagos
Horário de verão retroativo
Meu maior desejo:
o por vir no maremoto.
C A I X A . P R E T A
a tudo que pulsa
quinta-feira, 4 de junho de 2015
Escolhas
Não fechei a porta
para mentira alguma.
Temia que, lá fora,
as verdades também ficassem presas.
para mentira alguma.
Temia que, lá fora,
as verdades também ficassem presas.
sexta-feira, 29 de maio de 2015
Vhs
Só quem já teve um videocassete em casa conhece, nos detalhes, a real e
mais bruta experiência amorosa. Perceba que as duas coisas - o amor e o
videocassete, ou melhor, o filme que nele se insere - em nada se
diferenciam. Ao contrário disso, em tudo se assemelham e compartilham a
mesma natureza delicada de uma existência cuja validade só se legitima a
partir de mãos habilidosas. Repare que o filme - ou o que quer que seja
-, assistido com o privilégio das pausas e rebobinações
possíveis, só existe no estante mesmo em que se permite ler em um
aparelho, evidentemente, sempre desconhecido e, na mesma esteira, sempre
universal. O filme, aprisionado em seus limites de fita, nada é e nada
faz: é um acontecimento a existir, uma vida ainda não parida, suspensa,
desejosa por ser. Amar não seria senão a fome do outro, em uma espécie
de coexistência mútua? Há quem diga até que amar sozinho é amor
autoenganado, quase como uma super festa só para um. Não é mentira,
também, se afirmássemos, sem nenhum medo de parecermos excessivamente
pedantes, que todo videocassete que se caracteriza como tal falha, vez
ou outra, na leitura da fita. Para desfazer tamanha atrocidade, é
preciso ter destreza e certa artimanha nos dedos, porque, no manejar
equivocado ou desleixado do problema, é possível - e quase sempre isto
ocorre - que se machuque a fita, que se enrosque a extensão do seu corpo
ao seu próprio corpo e, assim, o filme seja outra coisa que não era. O
tratamento da situação adversa com algumas doses de maturidade de
movimentos é, pois, primordial para que o filme - ou o amor - seja o que se
pretendia ser e não qualquer outra coisa. Não há bons filmes onde não há
manutenção constante daquilo que se pretende assistir. No mais, é
necessário que não se confunda o prazer fugaz de um filme inédito pela
experiência de uma fita com ranhuras já naturalizadas.
Trivialidades
Perguntou se aquela curvatura da boca era sinal de dor ou de alegria
comedida. Respondeu que era serenidade enviesada em um mastro fino e
flexível, que se contorcia conforme a brutalidade dos dias ventosos.
Perguntou se aquele silêncio que saía da mesma boca curvada era
indicativo de complacência ou rebelião. Rebelião calada, respondeu sem
nenhum vestígio de reticências. Perguntou se o mundo seria então só
silêncio e paz velada. Respondeu que uma boca falante e cheia de dentes,
às vezes, precisa repousar os lábios. Perguntou se a vida era aquilo
mesmo, aquele latejar agudo e sorrateiro no peito. Respondeu que parasse
de confundir o coração com aquela coisa maior cujo nome nenhum dois
sabiam exatamente. Apagou o cigarro enquanto o outro apagava o abajur.
Dormiram.
domingo, 3 de maio de 2015
terça-feira, 7 de abril de 2015
Segredos mudos
Eu não costumo ter medo daquilo que conheço. A natureza das coisas que
se relevam salta aos nossos olhos e, por isso mesmo, poucas vezes deixa
em mim qualquer vestígio de suspeita ou engano. O que me afeta é o
poder oculto das coisas inapreensíveis, contra as quais nada posso e
sobre as quais pouco ou nada sei. Uma dia de chuva, por exemplo, não tem
mistério nem segredos. Chover é, por excelência, uma ação que se
instaura na ordem do mostrar-se, dentro daquilo que concebemos como
confissão. Por isso, não há o que temer, porque ela é a própria
explicitude materializada e gotejante que se mostra inteira e
completamente no limite curto entre a barriga da nuvem e o chão; a chuva
é verdade. Ao contrário disso, os dias nublados sempre trazem algo de
misterioso, denunciando gritos mudos que sopram devagar em nossos
ouvidos. Eles são aquilo que está por vir, aquilo que ninguém sabe,
embora todos saibamos mais ou menos os contornos. Essa imprecisão me
assusta - talvez pela mania natural de dominador do mundo, talvez por
fatores outros ainda desconhecidos e igualmente herméticos. Dias
nublados são homens amordaçados e cheios de expressões.
domingo, 8 de março de 2015
"Cidades inteiras nascem a partir daqui"
Perguntaram a mim, à queima roupa, se eu pretendo mudar as pessoas com
as coisas que escrevo. Em verdade, nunca configurei, em minhas
pretensões, a ideia ambiciosa de transformar alguém que não fosse eu
mesmo. E isso vale para a vida de modo geral. Confiante na qualidade
dessa resposta, que, até então, só satisfazia as indagações que eu mesmo
me fazia em silêncio, acreditei que respondia dignamente e ainda dava
margem a certo tom de altruísmo, o que traz aquela sensação de dever
cumprido. Para minha surpresa, a tréplica foi feroz e me atingiu no
ponto mesmo da minha posição confortável, bem na minha imunidade de
escritor sem responsabilidade. Dizia, em termos gerais, que, se eu não
escrevia em função de transformar o outro, não estava escrevendo, mas
apenas agrupando palavras para um prazer narcisista e etéreo. O tiro
certeiro na minha fragilidade me fez atentar e considerar que, talvez,
eu só escrevesse porque um outro existe. Não enxergava, até então, que,
ao procurar ser o centro da minha própria escrita, poderia resvalar no
restante do mundo inteiro. Acho que era esse o grande propósito da
pergunta atrevida: acordar meu sonho tranquilo para a realidade crua à
qual pertenço e sobre a qual pouco sei. Vejo, agora, que escrevo, antes
de tudo, não porque tenho algum tipo de compromisso com a situação do
mundo e das pessoas, mas porque, se assim não fosse, eu viveria o óbvio e
negligenciaria minha própria condição de outro que sente.
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