Perguntaram a mim, à queima roupa, se eu pretendo mudar as pessoas com
as coisas que escrevo. Em verdade, nunca configurei, em minhas
pretensões, a ideia ambiciosa de transformar alguém que não fosse eu
mesmo. E isso vale para a vida de modo geral. Confiante na qualidade
dessa resposta, que, até então, só satisfazia as indagações que eu mesmo
me fazia em silêncio, acreditei que respondia dignamente e ainda dava
margem a certo tom de altruísmo, o que traz aquela sensação de dever
cumprido. Para minha surpresa, a tréplica foi feroz e me atingiu no
ponto mesmo da minha posição confortável, bem na minha imunidade de
escritor sem responsabilidade. Dizia, em termos gerais, que, se eu não
escrevia em função de transformar o outro, não estava escrevendo, mas
apenas agrupando palavras para um prazer narcisista e etéreo. O tiro
certeiro na minha fragilidade me fez atentar e considerar que, talvez,
eu só escrevesse porque um outro existe. Não enxergava, até então, que,
ao procurar ser o centro da minha própria escrita, poderia resvalar no
restante do mundo inteiro. Acho que era esse o grande propósito da
pergunta atrevida: acordar meu sonho tranquilo para a realidade crua à
qual pertenço e sobre a qual pouco sei. Vejo, agora, que escrevo, antes
de tudo, não porque tenho algum tipo de compromisso com a situação do
mundo e das pessoas, mas porque, se assim não fosse, eu viveria o óbvio e
negligenciaria minha própria condição de outro que sente.
domingo, 8 de março de 2015
Contra os verdadeiros
Criou-se uma ideia equivocada que postula a verdade acima de qualquer
coisa. Nessa esteira, não é raro o discurso cheio de personalidade que
diz: "Falo a verdade doa a quem doer". O que parece escapar nessa
premissa supostamente positiva é que a verdade - preciosa ferramenta, a
princípio, purificadora - quase sempre se confunde com uma arrogância
ímpar, revelando-se muito mais como uma arma opressora e cruel do que
como um bem a ser preservado. Assim, sob o pretexto vulgar
de serem portadores da verdade, muitos acreditam gozar de certo
prestígio social, de certo prazer que se consolida na crença coletiva da
- abre aspas - pessoa sincera - fecha aspas. É de praxe, portanto,
discursos racistas, homofóbicos, genocidas, machistas e muitos outros de
natureza igualmente criticáveis que se apóiam na lógica esquizofrênica
da verdade acima de tudo, como se trouxessem a luz do esclarecimento,
quando, na verdade, só ratificam sua própria essência estúpida. É um
engano duplo: 1) acredita-se que toda verdade deva ser cuspida
indiscriminadamente nos olhos de quem quer que seja; 2) esquece-se,
ingenuamente, do questionamento sobre sua própria legitimidade.
Dispenso, a partir disso, todo ato de degradação humana que se traveste
de verdade absoluta. Repudio as verdades de quem pretende promover
apenas o engano, a confusão, as enfermidades, o desencontro, as
mazelas. Nego, sem nenhum medo de parecer inflexível, a verdade que só é
verdade porque se mostra convenientemente incômoda.
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