domingo, 1 de fevereiro de 2015

Intranquilidade

                Veja-me como a quina da mesa do escritório, que, na sua natureza de coisa que é ponta, te aponta para uma dor aguda e latejante. Veja-me como o dedo mindinho; miúdo, estranho, de aspecto nunca ao certo descritível, de semblante errante e sempre inadequado para a harmonia dos pés. Veja-me como quem vê a morte, a fome, as pragas, os pecados, as imoralidades, as perversões. [Arregale os olhos.] Veja como quem vê um gato aberto, atropelado, esfacelado; como quem estuda a anatomia de suas tripas e percorre com atenção o rastro de sangue, que é o rastro da sua própria história. Veja e ouça; ouça com estetoscópios de metros o bate-estaca da minha presença que só é presença
porque só presença eu sei ser. Veja a mim dentro da geladeira, sobre os frutos estragados. Veja-me deteriorando os objetos, oxidando todas as coisas, rangendo as portas do carro, entupindo a pia, derrubando os retratos das paredes, sendo a parede, sendo os retratos e depois derrubando tudo novamente. Veja-me no incômodo, no pinga-pinga da bica da cozinha. Veja-me, também, na primeira rajada de água fria do banho quente, antes de de dormir; encontre a paz na perturbação. Lá, bem lá, estarei eu.

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